segunda-feira, 25 de maio de 2009

Uma história de luta - Parte II "Cabra Marcado Para Morrer"

A segunda parte da homenagem à Elizabeth Teixeira é o filme:
"Cabra marcado pra morrer" nele o jornalista

O FILME:
Cabra marcado para morrer começou a ser feito em 1964 como uma ficção inspirada num fato real, o assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira, presidente da Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba. Filmado em preto e branco, interpretado por não profissionais, o filme tinha Elizabeth Teixeira, viúva do líder assassinado, no seu próprio papel. Ao lado dela outros camponeses reconstituíam o seu cotidiano diante da câmera. O golpe militar interrompeu a filmagem. Iniciada em 26 de fevereiro, ela foi interrompida em primeiro de abril de 1964. O Exército invadiu o Engenho Galiléia, fazenda cooperativada de Pernambuco que servia de cenário para o filme, confiscou a câmera e os negativos que ainda não tinham sido enviados para o laboratório no Rio de Janeiro, prendeu as pessoas que não conseguiram fugir e denunciou a apreensão de “vasto material subversivo no arsenal de Galiléia”, ou seja: “filmes para a formação agitadora dos camponeses, holofotes para projeções noturnas, pois o treinamento era intensivo e diuturno” – noticiaram os jornais então, como é possível ver a certa altura do documentário. Dezessete anos depois Eduardo Coutinho voltou ao Nordeste para retomar as filmagens, ou mais exatamente: para investigar num documentário o que acontecera com as pessoas que participaram da filmagem em 1964. O filme é feito dos encontros com Elizabeth, a família dela e os camponeses do Engenho Galiléia, de conversas às vezes entrecortadas por fragmentos do que pode ser salvo das imagens filmadas naquela época.


O documentário, assim, é um filme sobre um filme de ficção baseado em fatos reais e interrompido depois de um mês de filmagem e também, e principalmente, sobre o que se passou com os camponeses do Engenho Galiléia depois do golpe militar. Coutinho, dentro da imagem, realizador e personagem da história, conversa com João Mariano, que em 1964 fez o papel de João Pedro Teixeira. Conversa com Severino Gomes, com José Daniel, com João Virgílio, com João José, com moradores do Engenho Galiléia, todos eles camponeses e intérpretes do filme interrompido. E vai em busca de Elizabeth Teixeira, que para fugir de perseguições políticas mudou de nome. Ela se escondeu numa cidadezinha do Rio Grande do Norte, passou a se chamar Marta Maria da Costa e se afastou dos nove filhos. Os filhos passaram a ser criados por parentes e amigos de Elizabeth, que não pode mais ver a própria família. O filme se ocupa de gente comum e a história que ele nos conta pode ser apanhada pelos olhos do espectador, numa certa medida, como uma outra representação do impulso que gerou o cinema do instante em que a filmagem de Cabra marcado para morrer foi interrompida – representação idêntica à que Nelson Pereira dos Santos propõe em Memórias do cárcere.

Zé Daniel conta como escondeu a câmera e ajudou o pessoal do filme a fugir.

João José lê um pedaço da introdução de Kaputt – livro esquecido em Galiléia por alguém da equipe e que ele guardou como lembrança do filme; ele associa a historia de Malaparte, que escondia seus textos durante a guerra, com a história que toda a gente do filme viveu ali em Galiléia.

João Virgílio conta como foi maltratado na prisão depois de detido como um dos integrantes do “arsenal da Galiléia”.

ABORDAGEM TÉCNICA:

Cabra marcado para morrer de Eduardo Coutinho se refere bem precisamente ao cárcere de 1964 e faz todo o possível para não falar de memória: procura anotar de modo objetivo aquele exato fragmento de realidade que se encontra diante da câmera – mais exatamente: aquele exato fragmento de realidade que se movimenta empurrado pela presença da câmera, porque neste documentário a câmera age mais do que em qualquer outro: não se limita a observar, registrar e comentar a ação, ela cria a ação. Age como a câmera de um filme de ficção, age mais que a câmera de um filme de ficção: deflagra uma situação e participa dela, radicaliza a intervenção do cinema mesmo quando sua presença parece se reduzir à função de observador que não interfere na cena filmada. O cinema, bem precisamente a câmera, aqui deflagra a cena. Não controla a cena, mas deflagra a cena que logo escapa de seu controle e no processo termina por inverter os papéis. A câmera determina que a cena aconteça e ao acontecer a cena determina como a câmera deve se comportar. O cinema de Coutinho registra imagens mais ou menos assim como Graciliano anota na prisão as histórias dos outros presos. Depois, na montagem, procura guardar estas anotações com a espontaneidade do instante em que foram anotadas.

Quer dizer: é assim mas não é assim tão simples. O realizador age na montagem tal como agiu durante a filmagem. Interfere sim, corta, monta, organiza as imagens numa certa ordem e aqui e ali, por meio de uma narração ou comentário, apresenta e explica algo da questão filmada ou do modo de filmar. Enquanto o filme está na tela o espectador nem sente esta interferência, porque se deixa levar principalmente pela ação viva dentro da imagem. É natural.

O filme interfere, compõe, manipula, e o espectador sabe que isto é natural. A construção cinematográfica pode levar o espectador diante do filme a sentir a imagem primeiro a realidade documentada e só depois como ela é documentada, primeiro a realidade como se ela estivesse lá, presença viva, e só depois como realidade artística; a sentir a imagem com naturalidade, como imagem não manipulada nem intermediada. Mas no cinema o fragmento que passa na tela vive de fato e como representação, a cena que parece viva ali como referência do que é vivo fora dela. Ver, no cinema, na pintura, no desenho, na gravura, em toda a construção feita para o olhar, não se limita a ficar preso ao imediatamente visível. E mais do que qualquer outro modo de fazer cinema, o documentário deixa os olhos do espectador livres para passear através das imagens presas ao que se passou no instante da filmagem para perceber, sentir, ver até além do que está imediatamente visível no quadro.


Cabra marcado para morrer – ficção com vontade ser documentário, documentário com vontade de ser ficção – nasceu de uma recusa de ver as coisas assim como a boa disciplina recomenda.
Um comportamento mais disciplinado talvez tivesse retirado de Cabra marcado para morrer aquele quase minuto inteiro em que João Mariano fica calado diante do microfone sem saber o que dizer, sem olhar para a câmera, cabeça baixa, contrariado, nervoso, sem vontade de abrir a boca. Um comportamento mais disciplinado teria cortado a imagem no instante da filmagem mesmo e começado tudo de novo em lugar de desperdiçar negativo diante de um entrevistado que não quer dar entrevista alguma. Cortado aí ou pelo menos diminuído a duração do plano na mesa de montagem para saltar sem mais rodeios ao que importa, o depoimento de João Mariano, que depois do silêncio interminável finalmente explode numa fala que parece não ter fim. Uma organização mais disciplinada do material talvez tivesse eliminado esse longo tempo morto, quase um convite para que o espectador se desligue do filme. Mas o silêncio fica parado lá, inteiro, tão grande que parece uma eternidade. E assim, graças à indisciplina que manteve na íntegra a eternidade parada, o filme amplia a força do depoimento que vem em seguida: João Mariano encara a câmera, diz que não gosta de falar de umas certas coisas e rompe de vez o silêncio.

O instante fica na memória, entre outros motivos, porque contrasta com a conversa informal e espontânea encontrada quase todo o tempo neste documentário. De tal modo o que se passa na tela se passa de modo natural que o espectador reage como se estivesse diante de uma situação viva, como se o filme nem existisse. Quer dizer, o filme faz questão de dizer que existe. Este filme aqui, mais do que qualquer outro, faz questão de dizer que é um filme. O realizador aparece dentro da imagem ao mesmo tempo como autor e como personagem, conversa com as pessoas entrevistadas e também com as pessoas por trás da câmera: comenta a falta de luz dentro da casa e pergunta se vai dar para filmar; preocupa-se com um ruído que pode ter atrapalhado a gravação; pergunta se a câmera pode caminhar atrás dele; pergunta se está tudo pronto para começar a entrevista; pergunta uma qualquer outra coisa que a gente nem sabe o que é, porque pergunta feita sem palavras, com um olhar, com um gesto quase imperceptível com a cabeça ou com as mãos.


Como se trata de filmar um encontro ou reencontro naquele exato momento em que ele se realiza, o diretor se insere dentro da imagem que filma como um personagem mesmo. Quase renúncia ao controle do quadro, à composição e à duração do plano (quase, porque alguma combinação prévia ao momento da filmagem existiu entre o diretor e o fotógrafo, pelo menos a indicação de colocar mais em quadro o entrevistado que o entrevistador). Por todos os motivos, porque é mesmo personagem da história que conta, ele faz um filme sobre o filme que o golpe militar não permitiu que ele terminasse, e porque faz um filme movido pela vontade de estar mais perto das pessoas do que da câmera, o diretor renuncia ao que parece mais do que qualquer outra coisa o essencialmente cinematográfico: a definição do ponto de vista de onde a cena vai ser vista e ouvida. Renuncia para poder participar da cena enquanto cena-primeira. A cena-outra que vai ser feita pela câmera, a imagem que seleciona corta e monta a cena cinematográfica que registra reapresenta e representa a cena-primeira o cinema ali no instante da filmagem escapa do controle do diretor. É verdade, ele irá retomar a direção do processo adiante, na seleção e ordenação do material filmado, mas ali, enquanto filma, não dirige, é dirigido.
Com algum exagero: Coutinho não se interessa tanto pelo cinema enquanto cinema.
Sem exagero algum: Coutinho se interessa pelo cinema como um meio de reencontrar as pessoas que trabalharam com ele no filme não terminado, quer conversar com elas para por meio delas falar de si mesmo.

Também por tudo isso o silêncio de João Mariano soa estranho.

Cabra marcado para morrer interessa não porque conseguiu apanhar com espontaneidade uns tantos fragmentos do cotidiano; interessa de fato porque compõe com estes fragmentos uma reflexão em torno de nossa história recente, porque se estrutura de modo a revelar simultaneamente uma coisa e outra: a coisa que está ali, a parte, e mais o todo em que ela se insere e que ela representa. *
Texto retirado do site Escrever Cinema:

http://www.escrevercinema.com/Coutinho_conversa_indisciplinada.htm

Links para o filme "Cabra Marcado Para Viver", homenagem à Eduardo Coutinho com trechos do filme "Cabra marcado pra viver":


Cabra Marcado Para viver:






Em breve post em homenagem a Eduardo Coutinho.

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