A noite não estava tão fria, embora tivesse chovido à tarde e estivesse nublado.
A noite não estava fria para mim que acabara de chegar da universidade e andava apressada como sempre pela rua quase deserta, temendo ser assaltada;
A noite não estava fria para o garoto que corria para não perder o ônibus;
A noite não estava fria para o homem que trabalhava no churrasquinho aquecido pelo calor do fogo;
A noite não estava fria para os homens que tomavam sua tradicional "lapada de cana" no início da noite no fiteiro da esquina;
Mas a noite parecia fria para aquela mulher, aquela que tinha sobre sua cintura o braço de um homem que também parecia ter frio ao seu lado, mas que tentava inutilmente esquentar com apenas um braço seu corpo;
A cena foi tocante, eles estavam deitados no chão onde não choveu por causa da marquise, em frente a uma loja fechada. Passava um pouco das sete da noite, era cedo para dormir, mas o que fazer? talvez dormir fizesse esquecer o frio, ou algo pior que com certeza também estariam sentindo: fome.
A noite não estava fria para as pessoas que dançavam animadas não muito distante dali, no anel interno da lagoa, onde o prefeito fizera uma festa para comemorar a inauguração da integração intermunicipal e de ônibus novos;
A noite não estava fria para quem tem cobertas e comida quentinha em casa;
A noite não estava fria para quem tem uma casa.
Mas a noite estava fria para aquele casal deitado ali no chão;
Tudo ficou frio para mim também, me senti impotente por não poder fazer nada, fiquei furiosa pela festa que ocorria e pelo desperdício de dinheiro, de comida, de tudo;
Me senti triste por acontecer coisas como essa em todos os lugares.
A noite continuou fria para mim de certo modo, mas a noite estava fria para o casal da maneira mais cruel.
Marília Domingues 30/04/08 22:17
4 Pensaram a respeito:
Acho que de certa forma a gente pode fazer alguma coisa sim. A gente pode começar a dizer para Ricardo e seus deputados o que queremos deles e porque votamos nele e para quem eles devem governar. Mas eu acho que a gente esqueceu de como dizer tudo isso porque temos cobertores, comida quentinha em casa e um teto para morar. A gente pode dizer não a diversas coisas que nos impõe... inclusive coisas como essas. E levar nossos amigos a fazerem o mesmo, basta descobrir quem realmente é amigo pra isso. Numa oportunidade mais oportuna, setaremos para discutir o que tenho em mente, ok? Abraços.
Terrível isso. Sempre me sinto impotente nessas situações. Uma criança no sinal,um idoso na calçada, um jovem acenando com uma flanela suja e triste. É o mundo da exclusão =/
Parabéns Marília pelo belo poema, belo sim, realista e que mostra a realidade.
Gosto desse realismo em poemas... Gosto dos utópicos, mas prefiro os realistas.
Que bom que se preocupa com isso.
Belo poema.
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