quinta-feira, 30 de abril de 2009

Noite fria

A noite não estava tão fria, embora tivesse chovido à tarde e estivesse nublado.

A noite não estava fria para mim que acabara de chegar da universidade e andava apressada como sempre pela rua quase deserta, temendo ser assaltada;
A noite não estava fria para o garoto que corria para não perder o ônibus;
A noite não estava fria para o homem que trabalhava no churrasquinho aquecido pelo calor do fogo;
A noite não estava fria para os homens que tomavam sua tradicional "lapada de cana" no início da noite no fiteiro da esquina;
Mas a noite parecia fria para aquela mulher, aquela que tinha sobre sua cintura o braço de um homem que também parecia ter frio ao seu lado, mas que tentava inutilmente esquentar com apenas um braço seu corpo;
A cena foi tocante, eles estavam deitados no chão  onde não choveu por causa da marquise, em frente a uma loja fechada. Passava um pouco das sete da noite, era cedo para dormir, mas o que fazer? talvez dormir fizesse esquecer o frio, ou algo pior que com certeza também estariam sentindo: fome.
A noite não estava fria para as pessoas que dançavam animadas não muito distante dali, no anel interno da lagoa, onde o prefeito fizera uma festa para comemorar a inauguração da integração intermunicipal e de ônibus novos;
A noite não estava fria para quem tem cobertas e comida quentinha em casa;
A noite não estava fria para quem tem uma casa. 
Mas a noite estava fria para aquele casal deitado ali no chão;
Tudo ficou frio para mim também, me senti impotente por não poder fazer nada, fiquei furiosa pela  festa que ocorria e pelo desperdício de dinheiro, de comida, de tudo; 
Me senti triste por acontecer coisas como essa em todos os lugares.
A noite continuou fria para mim de certo modo, mas a noite estava fria para o casal da maneira mais cruel.

Marília Domingues 30/04/08 22:17

4 Pensaram a respeito:

mo.rafaella@gmail.com disse...

Acho que de certa forma a gente pode fazer alguma coisa sim. A gente pode começar a dizer para Ricardo e seus deputados o que queremos deles e porque votamos nele e para quem eles devem governar. Mas eu acho que a gente esqueceu de como dizer tudo isso porque temos cobertores, comida quentinha em casa e um teto para morar. A gente pode dizer não a diversas coisas que nos impõe... inclusive coisas como essas. E levar nossos amigos a fazerem o mesmo, basta descobrir quem realmente é amigo pra isso. Numa oportunidade mais oportuna, setaremos para discutir o que tenho em mente, ok? Abraços.

Celina Modesto disse...

Terrível isso. Sempre me sinto impotente nessas situações. Uma criança no sinal,um idoso na calçada, um jovem acenando com uma flanela suja e triste. É o mundo da exclusão =/

Wilson Rezende disse...

Parabéns Marília pelo belo poema, belo sim, realista e que mostra a realidade.

gabriela disse...

Gosto desse realismo em poemas... Gosto dos utópicos, mas prefiro os realistas.

Que bom que se preocupa com isso.

Belo poema.