terça-feira, 10 de junho de 2014

A melhor época da vida (texto não revisado)

Que eu estou de saco cheio da sociedade, principalmente brasileira, não é segredo para ninguém. E além de todas as críticas que faço a esse sistema doente, me peguei pensando nas coisas que as nossas crianças estão aprendendo. Cada dia mais as novas gerações crescem sem valores, sem moral e sem as experiências maravilhosas de quando éramos crianças.

Tá, nem sou tão velha assim, mas cresci numa cidade de interior onde não tinha problema em dormir com a porta aberta. Lá eu deixava a bicicleta do lado de fora, cheguei até a esquecer de guardar e sai de madrugada para pegar, ela estava do mesmo jeito na calçada. Eu podia sair a noite para o quintal e ficar olhando um céu com milhares de estrelas que eu nunca vi na cidade 'grande' e sem medo de aparecer um ladrão ou estuprador no quintal.

Cresci num lugar onde não tinha internet e para assistir algum canal além da globo era preciso antena parabólica. A TV da minha casa era preto e branco e eu detestava o programa do Serginho Groisman a tarde. Quando compramos uma parabólica eu já era adolescente, antes disso vi um episódio de Cavaleiros do Zodíaco num dia quando resolveu pegar a falecida Manchete e lembro como se fosse hoje do enterro de Airton Senna, que eu fiquei chateada por não estar passando desenho.

Na minha cidade todos conheciam a minha família e eu conversava com os amigos fazendo telefone com latas. Eu era livre para me desenvolver. Quase perdi a unha de um dedo da mão depois de levar uma martelada enquanto fazia uma casa para o cágado (também conhecido como jabuti) e coloquei o braço dentro de uma 'fogueira' para salvar uma gatinha que meu vizinho 'demônio' jogou porque ela tinha feito cocô no sofá da casa dele.

Eu construí uma casa com folhas de banana e usava flores para enfeitar. Eu sabia que não podia encostar em urtiga, nem colocar na boca 'comigo ninguém pode'. Fazia aposta de quem conseguia comer mais pimenta malagueta e travei a mandíbula comendo seiva de árvore achando que era mel. Também construi uma casa feita de tijolos que eu mesma fiz e desabou na primeira chuva.

Jã levei mordida de cavalo na orelha e já me senti a amazona quando levei o animal para casa montada nele com uns 5 anos de idade (na verdade, o bicho sabia o caminho decorado). Já queimei a sola do tênis pisando na brasa da fogueira de são joão, já que não podia comprar daqueles tênis que acendiam. E colei os dedos quando cauterizaram com uma 'cobrinha' (tipo de fogo de artíficio).  Naquele tempo o são joão era animado, tinha muitos rojões, eu tinha medo de fogos, mas gostava de vela luminosa. A pamonha era feita em casa e passávamos o dia descascando milho, que era plantado no nosso próprio roçado, ralando e preparando. O cheiro enchia a casa.

Eu cortei as pálpebras e depois 'colei' elas quando caiu uma gota de cera de vela derretida, de uma lanterna caseira.

Naquele tempo o kinder ovo tinha brinquedos úteis e custava bem menos de um real. Aliás, um real era um dinheirão. Tanto quanto 100 daquela outra moeda que tinha o mesmo desenho da cédula de 1.

Eu escorregava nas ladeiras sentada em uma garrafa pet e rasgava a calça, brincava de esconde esconde, de toca (brincar de pegar), polícia e ladrão. Não gostava de brincadeiras lesas e que sempre tinham algum direcionamento para as meninas beijarem os meninos. Eu gostava de subir em árvores e de gatos.

O som era com fita K7 e eu ouvia xuxa (porque era o que tinha) e trem da alegria (que já era velho naquela época). Brincava de pular corda, fazia balanço, aprendi a andar de bicicleta numa bike pesada de segunda mão. Fui arrastada por uma cabra que enroscou a guia no meu pé e saiu puxando. Fui perseguida por um carneiro, por um cachorro, por um galo, por um sapo... Já desci ladeira dentro de uma mala de viagem.

Quando eu era criança eu roubava fruta no quintal do vizinho, jambo e carambola. Andava nas ruas por trás da cidade e descobria lugares abandonados. Jogava bola com os meninos na rua e quando maior, tomava banho de cachoeira.

Ganhei um video game quando eu tinha uns 11 anos, era um Nintendo que só tinha o jogo do Mario e a TV preto e branco que estava sem som nessa época, ficou para mim. Pouco depois ganhei um master system, também usado, mas esse pelo menos tinha 2 controles e dava para jogar com outras pessoas. Mas mesmo com esses jogos eletrônicos, a rua era sempre mais divertida. Fiz um bloco de carnaval, um circo e elaborei um 'labirinto de terror' e uma festa junina, mas nunca dancei quadrilha.

Corria para pegar o ônibus escolar que passava para a garagem com a porta de trás quebrada e atirava pedra em caixa de marimbondo até um me acertar e meu braço inchar até o cotovelo. Colocava apelido nas pessoas na escola e colocavam em mim e ninguém chamava isso de bullying.

Pulava de uma margem do riacho para a outra, caindo dentro sem saber nadar. Caí da pia de casa, da pia da casa da minha avó, do muro do colégio, de cima da cachoeira, do balanço do parquinho, do escorrega, caí da árvore, bati de frente com um poste quando vinha de bicicleta e quando vinha correndo a pé também.

Briguei de arrancar sangue. Levei soco, apertei garganta, só não puxei cabelo. Corri, sozinha e acompanhada. Caí na escolinha, na ladeira para casa, na calçada de vovó, no meio da rua. Apesar disso nunca quebrei nada.

Na minha cidade, todo mundo corria para casa quando dava 9 horas e ia começar a novela, acho que era a Indomada nesse tempo e todo mundo tinha medo do caderudo. As meninas brincavam junto com os meninos. Todos queriam ser power rangers e as pessoas que estavam ao nosso redor também eram honestas.

Ia para a festa da padroeira só por causa dos parques e os brinquedos eram na maioria manuais. Lembro como se fosse hoje do carrossel de Seu Necino que funcionava na base do braço, ele e os filhos empurrando e sem nenhuma trava para se segurar e tinha a canoa que nós mesmos tínhamos que puxar e no final todo mundo acabava com calos nos dedos. Tocava Creedence Clearwater Revival nos auto falantes.

Na minha cidade tinha um museu que era mais uma minibiblioteca e lá anunciavam quando ia acontecer algo, mas geralmente eles só davam o falecimento das pessoas. Ainda muito pequena lembro do céu ao anoitecer quando ainda não tem estrelas e ouvir a ave maria vindo de lá. (minha casa tinha vista para a Praça e como era no alto dava para ver boa parte da cidade).

Eu fui uma criança muito levada, mas muito feliz. Fico incomodada que hoje em dia as crianças não tenham essas oportunidades, trancadas em frente a computadores, tablets, TVs e celulares. Jogando fora a melhor época da vida e tornando-se seres desprezíveis e mesquinhos sem a mínima capacidade de discernimento ou sequer de aproveitarem os bons momentos.

0 Pensaram a respeito: